Sobre a música “Pra que Serve a Burguesia?”

Riot girl negra

O texto que se segue teve como origem a resposta que demos a uma pergunta da entrevista realizada conosco (Última Classe) pelo coletivo Hardcore sem Pátria para o zine Asco em março de 2015. Tal pergunta versava sobre uma música que compusemos no início da banda, tocamos em algumas gigs, gravamos, mas não chegamos a divulgar. A letra, contudo, chegou a ser divulgada por nós mesmos, por meio de nosso blog, e dizia o seguinte:

Pra que Serve a Burguesia?

Filosofando numa mesa de bar, observando o movimento na rua
Comecei a me perguntar pra que serve a burguesia?
Li Karl Marx, Lênin e Bakunin respaldado na teoria
Eu ainda me perguntava pra que serve a burguesia?

Ela tem dinheiro e não paga cerveja, tem carro importado e não dá carona
Promove coquetel e não convida a gente, Ela fode o mundo e não ajuda ninguém
Mas passando por um bairro chique pude ver tudo a minha volta
Observei da janela do ônibus pra que serve a burguesia

[refrão 3x]
A burguesia só serve [4x]
Pra fazer filha gostosa [2x]

Bom, inicialmente é necessário que se diga que nenhum integrante da banda compactua com machismo e com a misoginia. Tampouco, nunca fizeram parte de seguimentos subculturais que cultuam esses valores (se é que o machismo possa ser considerado um valor).

Quando escrevemos essa letra e compusemos essa música a ideia era apenas a de dizer que a burguesia não tem qualquer função na sociedade, ou seja, não serve para nada, de uma forma irônica e irreverente. Apenas isso, nada mais. Não são raras as falas de teóricos do anarquismo e do socialismo no sentido de que o único papel da burguesia é o sucumbir, de que o papel da burguesia na revolução é o de desaparecer, enfim, de dizer, também de forma irônica, que essa classe social não tem papel algum. Quando colocamos, de forma debochada, que a burguesia só serve pra fazer filha gostosa, também estamos querendo dizer isso: que é uma classe que parasitária e, portanto, sem função social, pois a beleza, ou as belezas em suas múltiplas formas, não são privilégio da burguesia.

Por outro lado, usar o termo gostosa, nesse sentido, também é uma ironia com o padrão de beleza plástica e fútil presente no discurso dominante e nos valores burgueses que são transmitidos a toda a sociedade (e em geral reproduzidos por ela) pelos veículos de comunicação de massa. A tal mulher gostosa presente na letra não é a mulher independente, autônoma, trabalhadora e lutadora, defensora de seus direitos e sim aquela que corrobora com esse discurso machista de beleza padronizado: as apresentadoras e dançarinas dos programas de TV, as “modelos” das revistas masculinas, as dondocas plastificadas das colunas sociais etc., ou seja, as mulheres fúteis, burguesas ou portadoras do discurso burguês, que usam seu corpo supostamente perfeito como forma de promoção pessoal colaborando, assim, com o machismo. O termo gostosa, da forma como pensamos em usar, teria um sentido irônico também.

Acreditamos que chamar essa mulher de gostosa a partir de uma visão crítica é ironizar a situação na qual ela mesma se coloca, é sugerir uma caricatura dela feita por ela mesma, é debochar desse papel que é na verdade um desserviço à mulher, à causa feminina, ao feminismo, enfim.

Riot girl classista

Obviamente o ponto central da letra é uma crítica irreverente à burguesia. A tal mulher gostosa, a gostosa da TV (esse termo é comum em letras de Rap), entrou na letra apenas para dizer, de forma criativa, que a única coisa para qual a burguesia supostamente serve não é algo real, algo de verdade e com conteúdo. É, na verdade, uma caricatura que ela, a burguesia, cria para explorar a imagem da mulher. Isso, que para nós é claro, talvez não tenha ficado bem explicado na letra.

Outro ponto que achamos importante abordar em “nossa defesa” é a respeito dos discursos e das práticas. Os discursos são criações mais ou menos coerentes que só fazem sentido se tiverem amparadas por práticas correspondentes. Dizer, cada um pode dizer o que quiser. Agora praticar o que se diz é outra coisa. Acreditamos que mais importante do que atentar-se aos discursos é nos atentarmos às práticas dos grupos ou indivíduos dos quais emanam esses discursos, pois elas, as práticas, falam mais a respeito deles do que o discurso criado sobre si mesmo. Nesse sentido, é só prestar atenção às práticas dos integrantes da banda. Algum de nós tem práticas machistas ou parece machista?

Outra coisa que também achamos importante dizer é que quando montamos a banda e fomos delineando seu perfil jamais pensamos em elaborar um conjunto de idéias coerentes que balizassem de forma rígida nossas letras, como uma ideologia. Claro que como uma banda Punk formada por Punks e Skinheads, ambos do campo da extrema esquerda, anarquistas, socialistas ou simpatizantes, produzimos letras de contestação, críticas e procuramos questionar tudo aquilo que não concordamos na sociedade em que vivemos, mas sempre com uma dose de ironia e de bom humor.

Essa postura e a forma de abordagem dos temas em nossas letras, talvez sejam, em parte, uma consequência da experiência que a maior parte dos integrantes da banda teve com o Punk nos anos 90, ou melhor, com um segmento específico dele, a cena libertária dos anos 90, que orbitava em torno do Anarcopunk e que, em determinado momento, atingiu um grau de policiamento e de cobranças comportamentais insuportável no qual existiam restrições quase que universais para quase tudo. Talvez essa experiência tenha nos habilitado a falar, ou tentar falar, sem melindres a partir de óticas que para nós são claras, mas que para outras pessoas, com experiências distintas, não sejam assim tão lógicas. Talvez essa diferença de bagagem tenha criado um ruído entre quem escreve e quem lê/ouve.

Vale ressaltar que não tocamos mais essa música e que essa decisão foi fruto do debate que se estabeleceu em torno dela. Muitas pessoas, homens e mulheres, Punks e Skinheads, especialmente algumas ligadas ao coletivo Hardcore sem Pátria, nos fizeram esse mesmo questionamento e a discussão fomentada nos fez refletir sobre ela e concluir que de fato a letra não transmite o que imaginamos que poderia transmitir e soa machista sim, é verdade. Fomos convencidos disso e deixamos de tocá-la. Vale observar também proficuidade do debate que se estabeleceu, pois fomos questionados, soubermos ouvir, fomos ouvimos, fizemos autocrítica e assumimos nosso erro, o erro de, mesmo sem intenção, produzir uma letra machista.

Para finalizar, gostaríamos de reforçar de que não somos uma banda machista, tampouco que apóia o machismo, a misoginia e qualquer outro tipo de discriminação de gênero.

Mesmo sofrida, jamais de calo

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