Textos

Rancore nº 7, zine Anarcopunk com entrevista de militante da SHARP.

Em 1995 esteve de rolê pelo Brasil o Raul Baguá, um Skinhead antifascista da seção portuguesa da SHARP (Skinheads Against Racial Prejudice), que também fazia parte do Centro de Cultura Libertária de Lisboa, Portugal.

Em São Paulo, capital, ele foi acolhido por militantes do MAP (Movimento Anarcopunk) que, além de dar-lhe abrigo na Comuna Goulai-Polé (Rio Pequeno, São Paulo/SP), durante seu período de estadia por aqui, o levaram a diversas gigs e eventos do cenário libertário daquela época.

Claro que isso não foi um processo harmonioso. Houve algum conflito e desconfiança por parte de alguns Punks da época, principalmente devido à realidade Skinhead brasileira de então, formada por White Powers e sua corruptela tupiniquim, os Carecas.

Apesar disso, o MAP/SP de então apoiou o Raul e foi pioneiro na divulgação da SHARP e do Skinhead antifascista no Brasil, algo que para nós, naquele momento, era novidade.

Por isso, estamos disponibilizando a edição de número 07, de abril de 1997, do zine Anarcopunk Rancore, então produzido pelo Alex (Comuna Goulai-Polé) e pela Samira (Coletivo Anarco Feminista – CAF/SP). Nesta edição do zine, referência na época, há uma entrevista com o Raul Baguá realizada em novembro de 1995.

Agradecemos a Márcia Miranda (Casa Punk Records e bandas Pós Guerra e Luta Armada) pela disponibilização desta edição do zine em PDF.

Clique aqui e baixe o Rancore nº7.

Capa da edição nº 7 de abril de 1997 do zine Anarcopunk Rancore.

Capa da edição nº 7, de abril de 1997, do zine Anarcopunk Rancore.


Sobre a música “Pra que Serve a Burguesia?”

Riot girl negra

O texto que se segue teve como origem a resposta que demos a uma pergunta da entrevista realizada conosco (Última Classe) pelo coletivo Hardcore sem Pátria para o zine Asco em março de 2015. Tal pergunta versava sobre uma música que compusemos no início da banda, tocamos em algumas gigs, gravamos, mas não chegamos a divulgar. A letra, contudo, chegou a ser divulgada por nós mesmos, por meio de nosso blog, e dizia o seguinte:

Pra que Serve a Burguesia?

Filosofando numa mesa de bar, observando o movimento na rua
Comecei a me perguntar pra que serve a burguesia?
Li Karl Marx, Lênin e Bakunin respaldado na teoria
Eu ainda me perguntava pra que serve a burguesia?

Ela tem dinheiro e não paga cerveja, tem carro importado e não dá carona
Promove coquetel e não convida a gente, Ela fode o mundo e não ajuda ninguém
Mas passando por um bairro chique pude ver tudo a minha volta
Observei da janela do ônibus pra que serve a burguesia

[refrão 3x]
A burguesia só serve [4x]
Pra fazer filha gostosa [2x]

Bom, inicialmente é necessário que se diga que nenhum integrante da banda compactua com machismo e com a misoginia. Tampouco, nunca fizeram parte de seguimentos subculturais que cultuam esses valores (se é que o machismo possa ser considerado um valor).

Quando escrevemos essa letra e compusemos essa música a ideia era apenas a de dizer que a burguesia não tem qualquer função na sociedade, ou seja, não serve para nada, de uma forma irônica e irreverente. Apenas isso, nada mais. Não são raras as falas de teóricos do anarquismo e do socialismo no sentido de que o único papel da burguesia é o sucumbir, de que o papel da burguesia na revolução é o de desaparecer, enfim, de dizer, também de forma irônica, que essa classe social não tem papel algum. Quando colocamos, de forma debochada, que a burguesia só serve pra fazer filha gostosa, também estamos querendo dizer isso: que é uma classe que parasitária e, portanto, sem função social, pois a beleza, ou as belezas em suas múltiplas formas, não são privilégio da burguesia.

Por outro lado, usar o termo gostosa, nesse sentido, também é uma ironia com o padrão de beleza plástica e fútil presente no discurso dominante e nos valores burgueses que são transmitidos a toda a sociedade (e em geral reproduzidos por ela) pelos veículos de comunicação de massa. A tal mulher gostosa presente na letra não é a mulher independente, autônoma, trabalhadora e lutadora, defensora de seus direitos e sim aquela que corrobora com esse discurso machista de beleza padronizado: as apresentadoras e dançarinas dos programas de TV, as “modelos” das revistas masculinas, as dondocas plastificadas das colunas sociais etc., ou seja, as mulheres fúteis, burguesas ou portadoras do discurso burguês, que usam seu corpo supostamente perfeito como forma de promoção pessoal colaborando, assim, com o machismo. O termo gostosa, da forma como pensamos em usar, teria um sentido irônico também.

Acreditamos que chamar essa mulher de gostosa a partir de uma visão crítica é ironizar a situação na qual ela mesma se coloca, é sugerir uma caricatura dela feita por ela mesma, é debochar desse papel que é na verdade um desserviço à mulher, à causa feminina, ao feminismo, enfim.

Riot girl classista

Obviamente o ponto central da letra é uma crítica irreverente à burguesia. A tal mulher gostosa, a gostosa da TV (esse termo é comum em letras de Rap), entrou na letra apenas para dizer, de forma criativa, que a única coisa para qual a burguesia supostamente serve não é algo real, algo de verdade e com conteúdo. É, na verdade, uma caricatura que ela, a burguesia, cria para explorar a imagem da mulher. Isso, que para nós é claro, talvez não tenha ficado bem explicado na letra.

Outro ponto que achamos importante abordar em “nossa defesa” é a respeito dos discursos e das práticas. Os discursos são criações mais ou menos coerentes que só fazem sentido se tiverem amparadas por práticas correspondentes. Dizer, cada um pode dizer o que quiser. Agora praticar o que se diz é outra coisa. Acreditamos que mais importante do que atentar-se aos discursos é nos atentarmos às práticas dos grupos ou indivíduos dos quais emanam esses discursos, pois elas, as práticas, falam mais a respeito deles do que o discurso criado sobre si mesmo. Nesse sentido, é só prestar atenção às práticas dos integrantes da banda. Algum de nós tem práticas machistas ou parece machista?

Outra coisa que também achamos importante dizer é que quando montamos a banda e fomos delineando seu perfil jamais pensamos em elaborar um conjunto de idéias coerentes que balizassem de forma rígida nossas letras, como uma ideologia. Claro que como uma banda Punk formada por Punks e Skinheads, ambos do campo da extrema esquerda, anarquistas, socialistas ou simpatizantes, produzimos letras de contestação, críticas e procuramos questionar tudo aquilo que não concordamos na sociedade em que vivemos, mas sempre com uma dose de ironia e de bom humor.

Essa postura e a forma de abordagem dos temas em nossas letras, talvez sejam, em parte, uma consequência da experiência que a maior parte dos integrantes da banda teve com o Punk nos anos 90, ou melhor, com um segmento específico dele, a cena libertária dos anos 90, que orbitava em torno do Anarcopunk e que, em determinado momento, atingiu um grau de policiamento e de cobranças comportamentais insuportável no qual existiam restrições quase que universais para quase tudo. Talvez essa experiência tenha nos habilitado a falar, ou tentar falar, sem melindres a partir de óticas que para nós são claras, mas que para outras pessoas, com experiências distintas, não sejam assim tão lógicas. Talvez essa diferença de bagagem tenha criado um ruído entre quem escreve e quem lê/ouve.

Vale ressaltar que não tocamos mais essa música e que essa decisão foi fruto do debate que se estabeleceu em torno dela. Muitas pessoas, homens e mulheres, Punks e Skinheads, especialmente algumas ligadas ao coletivo Hardcore sem Pátria, nos fizeram esse mesmo questionamento e a discussão fomentada nos fez refletir sobre ela e concluir que de fato a letra não transmite o que imaginamos que poderia transmitir e soa machista sim, é verdade. Fomos convencidos disso e deixamos de tocá-la. Vale observar também proficuidade do debate que se estabeleceu, pois fomos questionados, soubermos ouvir, fomos ouvimos, fizemos autocrítica e assumimos nosso erro, o erro de, mesmo sem intenção, produzir uma letra machista.

Para finalizar, gostaríamos de reforçar de que não somos uma banda machista, tampouco que apóia o machismo, a misoginia e qualquer outro tipo de discriminação de gênero.

Mesmo sofrida, jamais de calo


Anacronismo, contexto e mudança: reflexões acerca da união e da convivência entre Punks e Skinheads

Punks e Skinheads contra a homofobia

Punks e Skinheads contra a homofobia.

A união entre Punks e Skinheads, como tudo na vida, foi algo alcançado com muitas dificuldades e vários conflitos que surgiram no caminho até então percorrido e até o alcance do atual estado das coisas, em que ambas as subculturas convivem.

Essas dificuldades devem-se, principalmente, à origem e ao modo como se deu essa relação ainda na década de 1980.

É dever ressaltar que o Skinhead foi introduzido no Brasil pelos Carecas, uma gangue Punk do início dos anos 80 que pouco a pouco foi se distanciando, em diversos aspectos, dos Punks da cidade e deu origem aos Carecas do ABC e aos Carecas do Subúrbio (posteriormente surgiram no Rio de Janeiro/RJ os Carecas do Brasil).

Num segundo momento houve o envolvimento daqueles grupos com matrizes político-ideológicas conservadoras e de extrema direita. Alguns se vincularam a sistemas ideológicos nacionais, como o Integralismo, por exemplo. Outros acabaram por se ligar a pensamentos difundidos principalmente a partir da Europa, como foi o caso daqueles que se envolveram com o Neonazismo.

Vale lembrar que essa aproximação entre subculturas urbanas e ideologias políticas já havia acontecido também, pouco tempo antes, em diversos países da Europa. Parte desses grupos, tanto Punks, quanto Skinheads, se filiou a movimentos de extrema direita e/ou de esquerda. Houve ainda outra parte (talvez a maior delas) que não se envolveu ideologicamente com nada, voltando-se basicamente à música, à denúncia, às críticas e à quebra de modelos estéticos, de forma mais descompromissada, mas nem por isso menos contundente.

Enquanto isso, aqui no Brasil, diferentemente, os grupos que passaram a reivindicar o Skinhead (inicialmente punks carecas, depois Carecas e Whitepowers) ligaram-se majoritariamente a pensamentos de direita (nacionalismos, Integralismo, Neonazismo, etc.), ao passo que parte dos Punks vinculou-se ao Anarquismo.

Outra parte dos Punks, majoritária, apesar de reivindicar a anarquia (e não o anarquismo enquanto sistema ideológico teoricamente organizado), se manteve fiel à postura inicial de contestação social e crítica à ordem, independentemente de filiação político-ideológica.

Essa diferença no desenvolvimento do Skinhead, do Punk e da relação entre ambos, particularidade brasileira, levou ao surgimento do mito de que todo Skinhead é fascista ou, pior ainda, de que o skinhead é uma subcultura fascista por natureza.

Skinheads anti-racistas e Punks contra a homofobia.

Skinheads anti-racistas e Punks contra a homofobia.

Esses preceitos foram, em grande parte, responsáveis pelas dificuldades enfrentadas até que ambas as subculturas pudessem vir a conviver e a somar forças, tal como acontece hoje, onde já temos consolidada uma realidade em que Skinheads tradicionais, Redskins, Anarcoskins e membros da Rash (Red and Anarchists Skinheads) e da Sharp (Skinheads Against the Racial Prejudice) intervém e atuam juntamente com Punks, Rappers e quaisquer outros grupos subculturais de postura libertadora e antifascista.

Aquele quadro inicial, gestado ainda no início dos anos 80, começou a mudar em meados da década de 1990, quando indivíduos, mesmo que não organizados em coletivos ou grupos, passaram a reivindicar o Skinhead a partir de uma postura de esquerda. Inicialmente houve muita desconfiança e discriminação por parte dos Punks das mais diversas tendências e de quase todos os grupos.

Entre o final dos anos 90 e o início dos anos 2000 surgiram duas iniciativas que contribuíram bastante, acreditamos, pelo menos no que se refere à São Paulo, para a mudança da realidade de então e para a aceitação do Skinhead em sua versão não fascista, tal qual fora em seu surgimento e conforme se apresentava na Europa e nos demais países da América Latina: a criação do coletivo Rash (Red and Anarchists Skinheads) na cidade de São Paulo/SP e o surgimento de uma crew na cidade de Santos/SP, a Moonstompers (MS Crew), que passou a reunir em sua base Punks e Skinheads.

A partir daí, cada vez mais, Skinheads e Punks passaram a frequentar os mesmos gigs, festas e eventos; a atuar juntos nas mesmas manifestações e protestos; e a intervir conjuntamente nas mais variadas formas de ações, mostrando que o Skinhead, desta vez assumidamente antifascista, já havia se consolidado e se firmado como uma realidade também aqui no Brasil.

Com o passar dos anos, grupos e coletivos Punks foram, aos poucos, aceitando e se unindo aos Skinheads por perceberem que estão juntos, nas ruas, pelas mesmas causas e passaram a constituir um cenário coeso e coerente do qual hoje fazem parte diversos coletivos Punks, como: Ameaça Punk, Ferro Velho Punk, Revolução Punk Subúrbio, Hard Core Sem Pátria, além de muitos outros Punks independentes de São Paulo, região e também outras localidades.

Punks & Skins destruindo o preconceito. Oi!

Punks & Skins destruindo o preconceito. Oi!

O Skinhead hoje já não é mais o que foi nos anos 80 aqui no Brasil. O Skinhead antifascista nunca foi a mesma coisa que a versão Skinhead corrompida e deturpada pela extrema direita (cujo Punk também teve e ainda tem seu correlato, apesar de muito se esquecerem disso).

Julgar o passado com o olhar, as percepções e os valores do presente é o pior erro que se pode cometer na análise de qualquer realidade. Se hoje achamos que uma atitude ou um gesto são inconcebíveis e/ou inaceitáveis não quer dizer que em outras épocas ou em outros lugares também o eram.

No mesmo sentido vem a questão: como podemos ter certeza de que nossas práticas atuais, que julgamos adequadas, não serão vistas com desconfiança no futuro? Somos homens e mulheres de nosso tempo e estamos sujeitos ao que ele nos permite pensar, ver e fazer.

A contextualização e uma maior atenção à ambiência de cada momento histórico e de cada realidade regional são necessárias para que não se cometam anacronismos e atribuição de valores de nosso tempo às pessoas e a grupos de outras épocas e lugares. Anacronismos que, por sinal, têm sido cometidos de forma indiscriminada apenas contra o Skinhead, ao passo que, em relação ao Punk, muitas vezes se analisa, se relativiza, se discute e se releva, como se ele tivesse uma trajetória linear, progressiva, evolutiva e cumulativa, sem contradições e equívocos. Não, não teve. Felizmente nós, Punks e Skinheads, somos humanos.

Ambos são subculturas nascidas no seio dos setores populares das sociedades onde surgiram, e como tais sempre estiveram expostas e interfaceadas aos pensamentos e às visões de mundo predominantes nesses meios (pensamentos e visões que podem não ser necessariamente próprios de cada segmento social, mas apropriações feitas por imposição ou não de pensamentos e visões de setores dominantes da sociedade). Por mais que ambos sempre tivessem se colocado em posição de crítica e de rompimento, trata-se de um processo que leva tempo. É inegável que eventualmente tenham reproduzido elementos que inicialmente se propuseram a negar.

Atribuir características conservadoras que existem de forma dispersa nas camadas inferiores da sociedade a sistemas ideológicos organizados de extrema direita é condenar injustamente pessoas comuns, trabalhadoras, exploradas, oprimidas, sem ou com pouca instrução e condição diminuta de discernimento. É uma equiparação equivocada. Uma coisa é o ideólogo que dissemina o preconceito e procura se respaldar teoricamente, outra é aquele que reproduz esses pensamentos de forma não articulada e confusa.

Skinheads contra a homofobia.

Skinheads contra a homofobia.

O Skinhead e o Punk são subculturas que em algum momento tiveram características de movimento, formadas por pessoas comuns. Pessoas que às vezes erram e que às vezes acertam. Em algum momento houve excessos? Em algum lugar houve contradições? Provavelmente, afinal somos seres humanos. Mas não foram apenas os Skinheads que os cometeram, os Punks têm sim sua parcela de responsabilidade. Classificar dois grupos que tiveram origens similares e vivências próximas, como eternos mocinhos e bandidos que lutam eternamente entre si é uma prática maniqueísta e antiquada que tem sua raiz no mais tradicional e conservador pensamento cristão: o Bem que sempre foi bom combatendo o Mal que sempre foi mau. Prática e pensamento que deveríamos, como Punks e Skinheads, combater e não reproduzir.

Assumimo-nos como subculturas, logo, reconhecemos nossa condição de movimentos contraculturais, se tomarmos como paradigma a cultura de massas. Devemos, portanto, estar comprometidos com as mudanças e com as rupturas e não com as manutenções e com as continuidades.

Ora, se o Skinhead antifascista, que hoje já está consolidado no Brasil, representa uma mudança em relação ao Skinhead fascista e racista dos anos 80, não deveriam os Punks estender-lhe as mãos, reconhecendo nesse amadurecimento uma transformação de realidade? Não sabemos nós, na teoria e na prática, que o Punk tem tudo a ver com mudança? E ainda, não sabemos nós do passado também confuso e deveras conturbado do movimento punk mundo afora?

Se nos valemos de um conceito mínimo de razoabilidade para julgar e absolver uns, por que o desconsiderar por completo para julgar e condenar outros?

Acreditamos que o Punk e o Skinhead possuem suas divergências e suas convergências. Felizmente, estas são maiores e mais sólidas que aquelas. Se um dia o ódio, o preconceito e o racismo nos dividiram, hoje a revolta, o inconformismo, a resistência, o classismo e a luta contra todos os tipos de preconceito e de discriminação nos tornaram irmãos.

Sem mais, Punks e Skinheads de todo o mundo, uni-vos!

Observação: Este texto foi produzido pela própria banda em janeiro de 2013 para um zine que foi distribuído no evento Cultura Marginal… Sobrevivência nas Ruas organizado pelo coletivo Hardcore sem Pátria na Casa de Cultura Marginal – CCM no dia 6 de janeiro de 2013.

Cartaz do evento Cultura Marginal... Sobrevivência nas Ruas (coletivo Hardcore sem Pátria)

Cartaz do evento Cultura Marginal… Sobrevivência nas Ruas (coletivo Hardcore sem Pátria).